22 August, 2011

Precisa-se matéria prima para construir um País

 (EPC, antes de morrer, deixou-nos este fiel retrato de nós próprios)

A crença geral anterior era de que Santana Lopes não seria bem como Cavaco, Durão e Guterres. Agora dizemos que Sócrates não serve. E o que vier depois de Sócrates também não servirá para nada. Por isso começo a suspeitar que o problema não está no trapalhão que foi Santana Lopes ou na farsa que é o Sócrates. O problema está em nós. Nós como povo. Nós como matéria prima de um país. Porque pertenço a um país onde a esperteza é a moeda sempre valorizada, tanto ou mais do que o euro. Um país onde ficar rico da noite para o dia é uma virtude mais apreciada do que formar uma família baseada em valores e respeito aos demais. Pertenço a um país onde, lamentavelmente, os jornais jamais poderão ser vendidos como em outros países, isto é, pondo umas caixas nos passeios onde se paga por um só jornal e se tira um só jornal, deixando-se os demais onde estão. Pertenço ao país onde as empresas privadas são fornecedoras particulares dos seus empregados pouco honestos, que levam para casa, como se fosse correcto, folhas de papel, lápis, canetas, clips e tudo o que possa ser útil para os trabalhos de escola dos filhos... e para eles mesmos. Pertenço a um país onde as pessoas se sentem espertas porque conseguiram comprar um descodificador falso da TV Cabo, onde se defrauda a declaração de IRS para não pagar ou pagar menos impostos. Pertenço a um país onde:
- a falta de pontualidade é um hábito
- os directores das empresas não valorizam o capital humano
- há pouco interesse pela ecologia, onde as pessoas atiram lixo na rua e, depois, reclamam do governo de não limpar os esgotos
- as pessoas se queixam que a água e a luz são serviços caros
- não existe a cultura pela leitura (onde os nossos jovens dizem "que é muito chato ter de ler") e não há consciência nem memória política, histórica e económica
- os nossos políticos trabalham dois dias por semana para aprovar projectos e leis que só servem para caçar os pobres, arreliar a classe média e beneficiar alguns.

Pertenço a um país onde as cartas de condução e as declarações médicas podem ser "compradas", sem se fazer qualquer exame. Um país onde uma pessoa de idade avançada, ou uma mulher com uma criança nos braços, ou um inválido, fica em pé no autocarro enquanto a pessoa sentada finge que dorme para não lhe dar o lugar. Um país no qual a prioridade de passagem é para o carro e não para o peão. Um país em que fazemos muitas coisas erradas, mas estamos sempre a criticar os nossos governantes. Quanto mais analiso os defeitos de Santana Lopes e de Sócrates melhor me sinto como pessoa, apesar de que ainda ontem corrompi um guarda de trânsito para não ser multado. Quando eu digo o quanto Cavaco é culpado, melhor sou eu como português, apesar de que ainda hoje pela manhã explorei um cliente que confiava em mim, o que me ajudou a pagar algumas dívidas.

Não. Não. Não. Já basta.

Como matéria prima de um país temos muitas coisas boas, mas falta muito para sermos os homens e as mulheres que o nosso país precisa. Esses defeitos, essa "chico-espertice portuguesa" congénita, essa desonestidade em pequena escala, que depois cresce e evolui até se converter em casos escandalosos na política, essa falta de qualidade humana, mais do que Santana, Guterres, Cavaco ou Sócrates, é que é real e honestamente má, porque todos eles são portugueses como nós, eleitos por nós. Nascidos aqui, não noutra parte... Fico triste. Porque, ainda que Sócrates se fosse embora hoje, o próximo que o suceder terá de continuar a trabalhar com a mesma matéria-prima defeituosa que, como povo, somos nós mesmos. E não poderá fazer nada... Não tenho nenhuma garantia de que alguém possa fazer melhor, mas enquanto alguém não sinalizar um caminho destinado a erradicar primeiro os vícios que temos como povo, ninguém servirá. Nem serviu Santana, nem serviu Guterres, não serviu Cavaco nem serve Sócrates e nem servirá o que vier.

Qual é a alternativa?

Precisamos de mais um ditador que nos faça cumprir a lei com a força e por meio do terror? Aqui faz falta outra coisa. E enquanto essa "outra coisa" não comece a surgir de baixo para cima, ou de cima para baixo, ou do centro para os lados ou como queiram, seguiremos igualmente condenados, igualmente estancados... igualmente abusados! É muito bom ser português. Mas quando essa portugalidade autóctone começa a ser um empecilho às nossas possibilidades de desenvolvimento como nação então tudo muda. Não esperemos acender uma vela a todos os santos a ver se nos mandam um Messias.... Nós temos que mudar. Sim, creio que isto encaixa muito bem em tudo o que anda a acontecer-nos: desculpamos a mediocridade de programas de televisão nefastos e, francamente, somos tolerantes com o fracasso. É a indústria da desculpa e da estupidez. Agora, depois desta mensagem, decidi procurar o responsável, não para o castigar, mas para lhe exigir (sim, exigir) que melhore o seu comportamento e que não se faça de mouco, de desentendido. Sim, decidi procurar o responsável e estou seguro de que o encontrarei quando me olhar no espelho. Aí está, não preciso de procurá-lo noutro sítio. E você o que pensa?... Medite!

Eduardo Prado Coelho (29.03.44-25.08.07) in Público